2022, Número 3
Prática deliberada em ciclos rápidos no treinamento de ressuscitação cardiopulmonar pediátrica: uma revisão de escopo
Idioma: Portugués
Referencias bibliográficas: 20
Paginas: 85-93
Archivo PDF: 292.07 Kb.
INTRODUçãO
Prática deliberada em ciclos rápidos (PDCR) é uma estratégia instrucional de ensino baseado em simulação que identifica lacunas de desempenho e fornece feedback imediato e direcionado para melhorar conhecimento, habilidades e atitudes de participantes do treinamento.1
Em 2014, Hunt cunhou o termo, descrevendo essa nova estratégia de simulação.1 Na PDCR o mesmo caso clínico é simulado de forma repetida até o domínio da competência desejada pela equipe que está sendo treinada; quando os objetivos desse ciclo são alcançados, um novo ciclo se inicia, com incremento na complexidade. A Figura 1, adaptada do artigo original de Hunt, resume essa dinâmica de treinamento.1
São princípios básicos da PDCR maximizar o tempo da prática deliberada, oferecer múltiplas oportunidades de praticar as competências de forma correta e criar um ambiente de segurança psicológica, para permitir que participantes aceitem o feedback direcionado.2
Ericsson sugere que o domínio no desempenho clínico não é atingido automaticamente através da experiência, mas a partir da integração de um sistema complexo de ações para execução, monitoramento, planejamento e análise de performance. Dessa maneira, a forma mais efetiva para atingir esse domínio seria através da prática deliberada.3 A prática deliberada é utilizada amplamente por profissionais como músicos e atletas de alto desempenho, com o objetivo de atingir e manter a excelência.4
A dinâmica desse modelo de simulação é compatível com revisão sistemática clássica de Issenberg e colaboradores, que demonstra que um dos fatores essenciais para o bom desempenho do ensino baseado em simulação é a possibilidade de obter feedback de qualidade e prática repetida de habilidades.5
Embora possa ser utilizado para diversos objetivos pedagógicos, a estratégia da PDCR funciona melhor para treinar diretrizes de desempenho existentes e bem estabelecidas, quando há necessidade dos alunos dominarem as habilidades, quando há pouco tempo para dominar o conteúdo, no treinamento de eventos de baixa oportunidade, alta gravidade e sensíveis ao tempo e em situações de equipe que exigem ou se beneficiam de scripts ou coreografias específicas. Um bom exemplo de temática é a ressuscitação cardiopulmonar pediátrica, contexto no qual o PDCR foi inicialmente descrito.1 Por outro lado, situações onde não há um padrão estabelecido de conduta, quando a resposta correta a situação problema é controversa, quando há gaps significativos no conhecimento dos participantes sobre o tema ou ainda na indisponibilidade de equipamento que permita a aprendizagem contextualizada são situações onde PDCR provavelmente não é o melhor método.6
O presente estudo teve o objetivo de revisar a literatura disponível sobre o método de PDCR para ensino de ressuscitação cardiopulmonar pediátrica para estudantes e profissionais de saúde, e determinar as características do treinamento ideias para sua melhor eficácia. Até o momento, no nosso conhecimento, este estudo é a única revisão de escopo sobre uso de PDCR para treinamento de reanimação pediátrica.
MATERIAL E MéTODOS
A revisão de literatura ocorreu entre março e abril de 2022. A estratégia utilizada foi procurar os termos "prática deliberada em ciclos rápidos", "prática deliberada" e "ciclo rápido", "reanimação", "ressuscitação cardiopulmonar", "RCP", "simulação", "simulação médica", "pediatria" e seus termos equivalentes em espanhol, português e inglês, de janeiro de 2014 (quando o termo foi cunhado) até abril de 2022, nas bases de dados MEDLINE, SciELO, Scopus, Web of Science. Foram excluídos estudos para treinamento de ressuscitação cardiopulmonar (RCP) em adultos, estudos para treinamento de reanimação neonatal e uso de PDCR em outros contextos dentro da simulação médica que não o de RCP.
Dois autores procuraram os artigos de forma independente, com estratégias de busca diferentes (exemplo descrito no anexo abaixo). Os artigos selecionados foram então triados pelo dois autores (também de forma independente) pelo título e resumo e, caso necessário, foram revisados em sua versão integral. O critério de inclusão considerou qualquer desenho de estudo (exceto revisões) envolvendo estudantes ou profissionais de saúde, submetidos ao método de PDCR para treinamento de ressuscitação cardiopulmonar pediátrica comparado com simulação tradicional ou com nenhuma intervenção. Razões frequentes para excluir artigos foram trabalhos que não eram relacionados a treinamento em saúde, que usavam prática deliberada em outra forma que não ciclos rápidos, que utilizaram PDCR para treinamentos não relacionados à ressuscitação cardiopulmonar pediátrica ou que utilizavam ciclos rápidos para melhoria de qualidade ou PDCA (plan-do-check-act).
Os artigos incluídos foram categorizados em relação ao tipo de estudo, país, participantes, intervenção, comparação, local da simulação, simulador utilizado, desfechos avaliados e resultados. Os resultados foram classificados de acordo com o modelo de Kirkpatrick para treinamento e avaliação de programa: K1, reação K2, aprendizado K3 comportamento, K4 resultado (interferência na prática clínica).7
RESULTADOS
O número total de artigos foi 790, após exclusão de duplicados 492 foram analisados pelos títulos e resumos. 22 foram selecionados para leitura completa do artigo e desses 12 compõem a revisão1,8-18 (Figura 2).
A Tabela 1 descreve as características de cada estudo, intervenção, comparação e desfechos.
Entre os 12 artigos selecionados, 10 estudos foram realizados nos Estados Unidos, 1 no Canadá e 1 em Ruanda. Os desenhos variaram entre estudos prospectivos randomizados controlados, estudos qualitativos, descritivos, estudos prospectivos pré e pós intervenção, estudos piloto pré e pós intervenção, projeto educacional e desenho de currículo.
A maioria dos participantes era residentes de pediatria e sub-especialidades pediátricas.
PDCR constituiu a intervenção exclusiva em 8 estudos e parte dela em 4 estudos. Em 7 estudos a técnica de PDCR foi comparada a um grupo controle sendo este a simulação tradicional ou experiência prévia com simulação tradicional. Todos os estudos utilizaram uma definição similar para PDCR que condiz com aquela cunhada por Hunt et al. em 2014.1
Metade dos estudos foram conduzidos em centro de simulação e a outra metade in situ, e a maioria fez uso de simuladores pediátricos de alta fidelidade. A maior parte descreve cenários de ressuscitação pediátrica com dificuldade crescente conduzidos com feedback objetivo e direcionado introduzido através de pausas frequentes que ocorrem em situações específicas (muitas vezes pré estabelecidas em roteiro inicial descrito no estudo). O treinamento e/ou experiência do instrutor com a técnica de PDCR é detalhada em alguns artigos. Treinamento prévio do instrutor para ensino por técnicas de PDCR e simulação tradicional, participação em curso de instrutor, workshops, coreografias pré definidas e constante avaliação/monitorização dos instrutores pelos pares e por experts são alguns exemplos mencionados.8-11
Os temas envolvidos no uso de PDCR para reanimação cardiopulmonar pediátrica variaram entre aquisição de habilidades técnicas críticas para reanimação de alta qualidade, trabalho em equipe, melhoria de desempenho, retenção destas habilidades ao longo do tempo assim como percepção e satisfação dos participantes com esta técnica.
Para isso, os desfechos utilizados foram medida de tempo-à-tarefa, melhoria em escores pré e pós intervenção, como por exemplo o Pediatric Advanced Life Support (PALS) performance score, pontuações e resultados de checklists como Simulation Team Assessment Tool (STAT) e Student Satisfaction and Self-Confidence in Learning tool. Pré e pós testes assim como questionários, entrevistas e depoimentos de grupos de discussão também foram considerados.
De forma geral os resultados revelam que estratégia de PDCR está associada a maior satisfação dos participantes e melhoria do desempenho na ressuscitação cardiopulmonar pediátrica. Quando comparada a simulação tradicional, a estratégia de PDCR mostrou estar associada à um melhor tempo-à-tarefa (tempo para execução tarefas críticas na reanimação), maior número de tarefas realizadas em tempo crítico, maior aquisição de habilidades críticas e melhoria significativa de escores como STAT para fatores humanos e Pediatric Advanced Life Support (PALS) performance score.1,8,9,11,12
Alguns estudos mostram maior satisfação do participante com PDCR assim como menor índice de frustração quando comparados a simulação tradicional.10,13 Outros não revelam diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos neste quesito apesar de mostrarem alto índice de satisfação com as duas metodologias.14,15 Quando analisado individualmente a estratégia de PDCR no treinamento de RCP pediatrica parece estar relacionado com boa aceitação pelos participantes.16,17
Não foram observados resultados dentro das subcategorias K3 e K4.
DISCUSSãO
A necessidade de melhoria na reanimação cardiopulmonar (RCP) pediátrica foi uma das motivações iniciais que levou a criação do método de PDCR.1
Em 2020, Peretta et al., sugere indicações específicas para aplicação do método de PDCR em educação médica por simulação.6 De acordo com esta publicação, a técnica de PDCR constitui uma abordagem apropriada e indicada para treinamento de RCP pediátrica.
Em revisão sistemática publicada em 2021, Ng et al. mostra que o uso de PDCR em educação médica baseada em simulação está associado a vários desfechos positivos incluindo satisfação do participante e aquisição de habilidades críticas e conhecimento. Esta revisão tem como foco, porém, o uso de PDCR em educação médica por simulação e não se atém especificamente a RCP pediátrica.19
CARACTERíSTICAS GERAIS
Neste estudo foram selecionados 12 artigos. Estes descrevem desfechos associados ao treinamento com PDCR comparado ou não a simulação tradicional, logo após intervenção ou após um período de tempo para avaliar retenção.
Todos usaram a mesma definição para PDCR, similar àquela cunhada por Hunt em 2014.1 A população dos estudos foi majoritariamente composta por residentes de pediatria porém com nível de treinamento variável (ano de residência).
Em todos os trabalhos, descrevem-se cenários com progressão de dificuldade e faz-se menção a um feedback objetivo e direcionado feito através de pausas, assim como orientação prévia do participante em relação ao método. Quando PDCR foi comparado à metodologia tradicional, a estratégia de debriefing utilizada foi descrita.
As simulações transcorreram em centro de simulação (50%) ou in situ (50%). A maioria dos estudos especifica o treinamento do instrutor em relação à técnica de PDCR assim como o simulador utilizado (pediátrico e de alta fidelidade maioria dos trabalhos).
COMPARAçãO COM SIMULAçãO TRADICIONAL
Com intuito de tentar definir a melhor estratégia de simulação para treinamento de PCR pediátrica, 7 estudos compararam PDCR com simulação tradicional (sendo 1 com currículo padrão e outro com experiência prévia com simulação). De forma geral, estes estudos correlacionam o uso de PDCR com melhor desempenho na RCP pediátrica e maior satisfação do participante quando comparados a simulação tradicional.
Hunt et al. mostra em estudo publicado em 2014 uma melhoria nas medidas de qualidade relacionadas ao Basic Life Support (BLS) e desfibrilação (como uma redução significativa no tempo para iniciar compressões e propensão para desfibrilar em menos de 2 minutos) pós treinamento com PDCR quando comparado ao currículo standard.1
Em 2019, Lempke et al. demonstram que grupo treinado com PDCR apresentou melhores escores de subfatores humanos no STAT do que grupo tradicional durante avaliação de trabalho em equipe em RCP pediátrica.11
Em 2021 Lempke et al. compara novamente PDCR com simulação tradicional e descreve diferença significativa em tempo para desfibrilação (sendo menor no grupo de PDCR). Neste estudo não houve diferença significativa nos tempos para iniciar compressão nem para administrar adrenalina. Este estudo também analisa a carga cognitiva dos participantes em ambos os modelos de simulação e demonstra menor índice de frustração (pela análise do NASA work load index) para participantes treinados com PDCR em comparação aos que receberam treinamento por simulação tradicional.9
Porém, em estudo publicado em 2021, Rosman et al. não encontra diferença estatisticamente significativa entre resultados do STAT entre grupo de PDCR e simulação tradicional.14 Raju et al. também não encontra diferenças estatisticamente significativas entre PDCR e simulação tradicional ao comparar desempenho com o Pediatric Advanced Life Support (PALS) performance score apesar de relatar melhoria importante entre escores pré e pós intervenção com PDCR.12
Alguns fatores foram descritos como possíveis limitações para análise dos resultados. Dentre eles: o nível de experiência dos participantes, composição variável dos times assim como o fato do participante executar apenas uma função (e ser avaliado nela apenas) na simulação tradicional enquanto no PDCR há um rodízio das funções atribuídas a cada participante.
RETENçãO DE CONHECIMENTOS HABILIDADES
A escolha da melhor estratégia de simulação não só envolve a aquisição de conhecimento, habilidades técnicas e desempenho, mas também a retenção destes. Alguns dos trabalhos selecionados analisam e descrevem este aspecto em relação ao uso de PDCR para RCP pediátrica.
Em 2020, Swinger et al. mostra melhoria sustentada de desempenho na RCP pediátrica (avaliada através de melhoria do Pediatric Advanced Life Support (PALS) performance score e tempo para realização de tarefa) após treinamento por PDCR (imediatamente após treinamento com PDCR e 3 meses após).18
Em 2021, Raju et al. avaliaram o impacto de um treinamento booster com PDCR (versus simulação tradicional) realizado 9 meses após treinamento inicial com PDCR. Descrevem não haver diferença significativa no desfecho primário (Pediatric Advanced Life Support (PALS) performance score) entre os dois grupos 3 meses após o treinamento booster.12
Em 2022, Won et al, publica estudo que avalia o desempenho dos residentes de pediatria treinados com PDCR versus simulação tradicional após um período de wash out variável entre 1 a 12 meses. Dentre os resultados encontrados descreve que o grupo de PDCR demonstrou uma maior propensão em desfibrilar em até 3 minutos pelo grupo de PDCR em comparação ao de simulação tradicional e apresentou um maior Team Leader Evaluation Score.
Um dos desafios relatados nestes estudos parece ser a redução do número de participantes nos treinamentos de seguimento em relação a intervenção inicial, assim como a manutenção dos mesmos times.
Uma alternativa utilizada por Won et al. foi analisar o desempenho individual do líder, ao invés do time como um todo, o que pode facilitar o seguimento.8 Outra questão levantada foi as ferramentas ou desfechos escolhidos e suas sensibilidades específicas para detecção de diferenças estatisticamente significativas.
SIMULADORES E A PDCR
Embora na maioria dos estudos revisados há pouca ênfase em relação ao simulador utilizado, em sua maioria foram utilizados simuladores de alta fidelidade. Dado que esse método é especialmente útil para treinar habilidades e tempo na tarefa,6 a característica ideal do simulador para PDCR, mais que a semelhança física com o ser humano, deve ser permitir todas as funcionalidades das tarefas desejadas para o atendimento.20 Uma vez que um dos princípios do treinamento com PDCR é fornecer feedback objetivo,1 um simulador que forneça dados da qualidade de RCP e da eficácia de diferentes intervenções ao facilitador pode ser útil para permitir a melhoria de tarefas ligadas ao tempo e manobras críticas de ressuscitação.
CONCLUSõES
A Prática Deliberada em Ciclos Rápidos apresenta alta eficácia no treinamento de atendimento de parada cardiopulmonar, incluindo aumento da satisfação dos participantes e melhoria no desempenho na ressuscitação cardiopulmonar. O feedback objetivo e direcionado permite o aumento do tempo de prática de habilidades de ressuscitação. Simuladores que permitam tanto a prática de habilidades críticas na ressuscitação quanto forneçam esse feedback são desejáveis para desenvolvimento desse método de treinamento.
Apêndice: Estratégia de pesquisa, adaptada de Taras e Everett.17
- • Database: Ovid MEDLINE(R) "all database"
- 1 RCDP (multi purpose) (120)
- 2 "Deliberate Practice" (multi purpose) (616)
- 3 (Rapid cycle adj3 (feedback or practice)).(multi purpose) (54)
- 4 1 or 2 or 3 (790)
- 5 Remove duplicates from 4 (734)
- 7 Limit to 2014-current (482)
REFERENCIAS (EN ESTE ARTÍCULO)
AFILIACIONES
1 Centro de Simulação Realística, Hospital Israelita Albert Einstein.
2 McGill University, Department of Pediatric.
3 Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein.
CORRESPONDENCIA
Thomaz Bittencourt-Couto. E-mail: thomaz.couto@einstein.brORCID: http://orcid.org/0000-0003-4744-981X
Recebido: 15/07/2022. Aceite: 21/11/2022